Maomé e as Pussy Riot

Dá que pensar o nosso desigual acolhimento à  performance das Pussy Riot numa igreja de Moscovo e ao filme americano sobre Maomé que incendiou a rua islâmica. A primeira é um acto de liberdade e uma obra de arte, o segundo é irresponsável e kitsch. Curiosamente, ninguém notou que o protesto anti-Putin num local de culto poderia ser tão ofensivo para os ortodoxos como a sátira do Profeta para os muçulmanos. Curiosamente, ninguém se incomodou com a mistura entre política e religião das punks russas (que seria criticado por todos, e bem, se viesse de D. Januário ou do Arcebispo de Westminster). O que mostra como o “desencantamento do mundo”, assim lhe chamou Max Weber, nasce também do Romantismo: já não nos choca a profanação de um espaço sagrado e, mais do que isso, a arte ocupou o lugar da religião. Ora, tirando o puro medo que se lê nas entrelinhas (Hillary Clinton, por exemplo), a que se deve esta duplicidade de critérios? E como não cair em tal duplicidade, que atenta contra a igualdade de todos os cidadãos?

A questão começa por ser mais profunda: em democracia, como conciliar a liberdade de expressão e a liberdade religiosa? Pode o respeito pela religião impor limites à liberdade? A resposta deveria ser o bom senso. Mas esta resposta a nada responde, porque o bom senso não se legisla nem se decreta. E a experiência demonstra que é suficientemente elástico para que alguns, em seu nome, concedam ao Islão uma reverência que não têm pelo Cristianismo.

Seria tentador dizer que o “direito à blasfémia” está acima de tudo, mas a blasfémia é também um atentado à liberdade dos crentes, como o é um insulto racista para os negros ou uma piada anti-semita para os judeus. Em todos estes casos, ataca-se a legítima “exigência de reconhecimento” de uma comunidade, para usar o conceito de Charles Taylor. No entanto, reconhecer o “direito à blasfémia” é a única atitude de bom senso – em democracia e não só. Onde existe qualquer forma de sagrado, existe a possibilidade dialéctica de blasfemar. Uma cultura que jamais desrespeitasse os símbolos religiosos, hipótese meramente académica, seria talvez uma cultura sem religião. A blasfémia é a outra face do sagrado. E a outra face, diz o próprio Cristo, torna-se por vezes objecto de violência.

Aliás, podemos distinguir as sociedades pela forma – sempre variável e objecto de compromisso – de regular essa violência. Mesmo na Europa medieval, onde o Cristianismo tinha um peso maioritário, as fogueiras dos hereges conviviam com a paródia anticlerical. Será a apropriação dos tribunais de consciência pelos Estados (primeiro os católicos e depois os protestantes) a mudar as coisas. Colocando ao serviço da unidade religiosa os recursos das nações, a modernidade vai tentar resolver definitivamente o dilema entre liberdade individual e fé colectiva. Em vão. Porque, ao mesmo tempo, o Ocidente seculariza-se, abrindo uma nova frente de batalha entre a consciência religiosa e a laicidade. Segundo René Rémond, só o corte entre cidadania e confissão, operado pela Revolução Francesa, permitirá desfazer o nó.

De modo provisório, embora. Hoje, não temos a crença do século XIX na neutralidade do espaço público. O eclipse da transcendência na nossa civilização, em contraste com o mundo islâmico, leva a que a que a blasfémia seja vista de modo muito diferente dos dois lados do Mediterrâneo. Para o Islão, que não permite a representação de Alá e Maomé excepto pela palavra, qualquer imagem do sagrado é uma ofensa. Para o Ocidente, que há dois mil anos representa Deus sob os traços de um crucificado ou de uma criança, a caricatura religiosa é um mal menor. Mas na Europa e na América há cada vez mais muçulmanos. E a liberdade de expressão em Copenhaga ou em Los Angeles provoca ataques às embaixadas ocidentais em Bengazi e Jacarta.  Quando pensamos que as Pussy Riot deixaram de ser assunto, o vídeo do Profeta recorda-nos que a democracia é sempre a arte do equilíbrio.

PP

5 thoughts on “Maomé e as Pussy Riot

  1. Alexandre Homem Cristo diz:

    Pedro,
    Está interessante a reflexão. Sobre a primeira parte, tenho dúvidas que a comparação que fazes seja justa.
    Em primeiro lugar, não me parece que alguém tenha vindo defender que as Pussy Riot fizeram “arte”. Ninguém as avaliou pela música ou pela performance. Aliás, o mais provável é que poucos dos que sobre elas escreveram tenham sequer escutado uma das suas “músicas”. Na verdade, tratou-se apenas de uma acção de protesto político. Não tem nada de artístico, mas sim de propagandístico. O filme do Maomé, apesar da qualidade duvidosa, é um filme, e também foi avaliado por isso.
    Em segundo lugar, tenho dúvidas que tenha havido diferença no tratamento entre as Pussy Riot e o filme de Maomé. Em ambas, as vozes em defesa da liberdade de expressão e contra a repressão (política, religiosa ou ambas) soaram mais forte. A meu ver, bem. Há sempre excepções, claro, e em ambos os casos as houve.
    Em terceiro lugar, mesmo que tenha havido uma diferença de tratamento, não achas que essa prudência, desde que não comprometendo a coerência, seria compreensível tendo em conta a proximidade do problema? É que, de uma perspectiva americana, falar dos problemas alheios (da Rússia) é mais fácil do que falar em algo que os pode atingir (filme Maomé). Bem sei que ceder ao medo é perder parte da sua liberdade, mas quando se governa um país, compreende-se a prudência.
    Um abraço,
    A.

  2. Também achei o post interessante, embora me tenha debruçado mais na primeira parte (e não tanto na questão da conciliação entre duas liberdades e na confrontação (equilíbrio) Fé-blasfémia. Sobre a mistura entre política e religião já escrevi aqui (http://aagora.blogspot.pt/2012/08/pussy-riot-contra-laicidade.html), e fiquei surpreso de mais ninguém ter reparado no absurdo que é o uso de um templo para fins de agit-prop anarca quando se fosse um clérigo isso teria levantado um coro de reclamações (se bem que na Rússia, aparentemente, isso até aconteça). Interessante também o paralelismo entre a blasfémia e o insulto racista, mas na nossa cultura domada pelo politicamente correcto (o termo já cansa, mas não encontro outro melhor) as ofensas têm a sua hierarquia.

  3. […] meu camarada de fumo Alexandre Homem Cristo comenta este post com três reparos: primeiro, não lhe parece “que alguém tenha vindo defender que as Pussy […]

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