Ainda o Master Chef: comida e memória

Boas contribuições ao início da discussão.

No ano passado ( ou há dois  anos, já não me lembro)  fiz uma série  de cinco crónicas na revista “Ler ” sobre o assunto. Interessa-me imenso o prolongar da cultura da alimentação até outras categorias: a organização social, económica, religiosa. O Henrique Pereira dos Santos, o José Quitério, o  Cunqueiro, o Gerbore, o Eça, o Camilo, enfim, tantos que trilham essa picada. O meu osso preferido é o lado familiar como base para o resto. O livro sobre  a cozinha de Simenon/ inspector Maigret é muito mais do que podem ler na ficha. Não só cobre mesas fora de Paris como tem em atençao permanente  a cozinha de infância do escritor ( tem-se vontade dos arenques jovens  e gordos, imanginamos o pequeno George a ver a mãe fazer a simples carne assada da valónia…).

Nestes tempos de Outono Português – parafraseando, infelizmente, o Stig Dagerman -, o laço familiar e a mesa vão ter ainda mais importância. Não só pelo que falta e pelo que está caro, mas, e sobretudo, pelo papel da mesa, da refeição familiar. Não me refiro a  receitas ou a  famílias pipoca, juntinhas a trincar frango com a televisão na novela. Refiro-me ao carácter fundamental da mesa: partilha e celebração. Quando é mais fácil os laços dissolverem-se é quando é mais importante mantê-los. A tradição de um prato numa data, a passagem da maneira certa de temperar uma caldeirada, o reviver da história da avó que ensinou a mãe a fazer aqueles biscoitos, tudo isso me faz sentir como o Winston Smith  quando vai ao bairro dos proles e encontra objectos de  outros tempos.

A cozinha não é cozinha. A cozinha é um lugar. Nesse lugar ( e também na sala, reconheçamos as vidas das cidades) ocorre cozinha, mas também a condensação das falas, das práticas, das raízes de coisas que às vezes vêm de territórios  estranhos aos citadinos. A língua, o cheiro e o som são artefactos que nos  permitem sobreviver à infância ( ainda hoje vejo a Florinda a tirar as lampreias vivas da pia) tanto quanto nos autorizam  a prolongá-la. Os premiados catalães falam muitas vezes da procura de um sabor específico fossilizado no cérebro, sabor organizado pelas mãos de uma avó, algures numa serrania, noutro século, noutra viagem.

FNV

15 thoughts on “Ainda o Master Chef: comida e memória

  1. João Lancastre e Tavora diz:

    Muito bom Filipe.
    E como eu gosto das minhas manhãs de Sábado na cozinha, e de quando o tempo é meu para usufruir da “sala”.

  2. Irrita-me solenemente o despautério de um João Lancastre e Távora tentando assoberbar as minhas manhãs d’ infância de pão amassado e de manteiga preparado pela minha tia avó Conceição, au doce de tomate caseiro e meio litro de leite de cabra fresco polas manhãs.

  3. Sensacional! A tradição nesse momento é ímpar, perdê-la é lamentável. Forte abraço Felipe!

  4. Esta ideia “procura de um sabor específico fossilizado no cérebro, sabor organizado pelas mãos de uma avó algures numa serrania” fez-me lembrar o filme de animação Ratatouille da Pixar.

  5. henrique pereira dos santos diz:

    Parabéns.
    Muito bom texto (obrigado pela referência, mas não é por isso que acho o texto bom).
    A Câmara de Ribeira de Pena editou um livrinho com três contos do Camilo sobre aquela região e num deles tem uma coisa muito interessante: uma descrição de uma refeição de batata que ainda devia estar nos seus primórdios de penetração na alimentação das pessoas e o uso de leite (de vaca) numa refeição, por parte de adultos, o que devia ser raríssimo (tirando as sobremesas, mas mesmo assim, que havia muito doce que hoje não concebemos sem leite e que seria feito, pelo menos algumas vezes, com água, como o arroz doce ou as tigeladas de Abrantes) e específico das alturas do Barroso onde abundam os prados de lima.
    A desorganização de horários familiares, com horários de trabalho menos definidos e com milhares de actividades dos meninos, tem enfraquecido muito os rituais da mesa comum.
    E isso parece-me um dos problemas da família tradicional e da sua capacidade de integração social.
    Incluindo a formação da tal memória culinária.
    henrique pereira dos santos

  6. IsabelPS diz:

    Posso atestar que, para quem vive uma vida no estrangeiro, como eu vivi, a “cultura da alimentação” é, de longe, o cabo (no sentido de amarra) que mais nos prende à pátria. Que o outro dizia que era a língua portuguesa, mas esta vem em longínquo segundo lugar.

  7. Carlos diz:

    Existem duas «madalenas» para me transportar para a infância: uma é a culinária a outra é a música. Mais do que pegar numa fotografia ou ver um filme que assisti na infância, são estas duas actividades as que descobrem o “sabor [sensação] específico fossilizado no cérebro” (que bela descrição).

  8. caramelo diz:

    Bem dito, Filipe. Há uma série de televisão, que nunca constará de nenhum ranking, mas de que eu gosto muito que é o The Middle (No Meio do Nada). Uma família baldas e disfuncional e adorável em que a mãe põe ketchup nas sandes dos filhos, para eles poderem comer vegetais como manda o dr. phil. De qualquer maneira, mesmo descontando estes casos patológicos, aquele é um povo sem culto da mesa. Sei eu também, por experiência direta, que os ingleses ficam espantados e horrorizados se vêm no prato um peixe com olhos. A maioria pensa que os seus pescadores pescam filetes congelados de um genérico de peixe. A mesa é só um lugar onde se barra o pão com cremes estranhos ou se corta a piza. Isso vai-se tornando por cá também um hábito, mas não faz parte da nossa cultura. Nós fazemos refogados demorados, caldeiradas, assados lentos, tiramos as tripas ao peixe (o meu pai era um artista com as lampreias), etc e isso corre o risco de se tornar numa simples memória. E assim se perdem bibliotecas de cheiros, que é o fator evocativo mais forte na nossa cozinha. Para mim, pelo menos, é.
    Se a mesa favorece ou não o convívio familiar, depende. Não seria assim para as famílias que tinham como lema: “à mesa não se fala” ou onde o chefe sujeitava os demais a um inquistório sobre o dia. A mesa pode ser um lugar um bocado inóspito ou hostil. Ou aquelas famílias grandes que relegavam os míudos para a mesa dos…. miudos. Era assim com a minha família pelo Natal, mas aí era sobretudo por questões logísticas e para deixar os maiores à vontade para se gabarem dos negócios, gozar uns com os outros em geral e tratar das partilhas. Nada de equívocos, era divertido e caloroso.
    Já comi muita coisa boa, mas nunca me sairá da cabeça o cheiro de um refogado de macarrão com carne de vaca, que eu nunca consegui reproduzir, nem que a minha mãe me repita a receita mil vezes, sílaba a silaba. Mistérios.

  9. Gustavo Santos diz:

    Recomendo o Ratatouille… Sim esse mesmo, o filme de bonecada que acerta na mouche na cena do crítico impossível de agradar que se vê arrastado para um flashback que o põe, agora rapazote de calções, à soleira da porta da cozinha onde a sua mãe cozinha. E provando o prato sente o afago brincalhão na cabeça. Quem disse que a cozinha é sobre comida?

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