“Espanta-me que o Pedro, um conservador, não concorde com isto”

Luís, há uma grande diferença entre ser conservador e ser partidário do poder não eleito da aristocracia, das elites ou, valha-nos Deus, dos sábios. Não sou eu que o digo: é o senhor de Tocqueville, quando explica que a nobreza britânica não acabou na guilhotina, ao contrário da francesa, porque tinha de passar pelo voto do povo para chegar à Câmara dos Comuns.
E há uma grande diferença entre ser democrata e ser partidário do poder não eleito da vanguarda do proletariado. Não sou eu que o digo: é o camarada Lenine, quando explica que a revolução pode chegar à guilhotina de todos os aristocratas sem passar pelo voto do povo.
Espanta-me que tu, não sendo um conservador, estejas mais perto da aristocracia do que eu. Não me espanta que tu, sendo um democrata, estejas mais perto da vanguarda do proletariado do que eu. Lá dizia o Brecht, esse conservador: não seria mais simples mudar de povo – e abolir o referendo?

PP

34 thoughts on ““Espanta-me que o Pedro, um conservador, não concorde com isto”

  1. Pedro Martins diz:

    ‘Lus, h uma grande diferena entre ser conservador e ser favorvel ao *poder no eleito* da aristocracia, das elites ou, valha-nos Deus, dos sbios.’

    Um strmene, by the books.

  2. A tua réplica está tão bonita que não a vou macular com uma tréplica. Mas repara que o meu problema é com as manifestações da democracia directa, o que me afasta do leninismo (que as promovia) sem me aproximar da corte de Luis XVI (que rejeitava, ao contrário de moi, a democracia representativa).

  3. manuel.m diz:

    “…A nobreza britanica não acabou na guilhotina ao contrário da francesa porque tinha de passar pelo voto do povo para chegar à Camara dos Comuns…”

    Ah,Ah! What a funny thing to say !

    Lembremos então alguns factos :

    Em 1780, um estudo feito revelou que o eleitorado de Inglaterra e País de Gales era composto por apenas 214.000 cidadãos, ou seja menos de 3% do total. Na Escócia a situação ainda era pior pois apenas 4.500 individuos tinham direito a voto,numa população de 2.6 milhões.

    No inicio de Sec. XIX ,com o inicio da revolução industrial e o aparecimento de uma burguesia cada vez mais forte, as pressões para a reforma do sistema eleitoral intensificaram-se sobretudo com a publicação da obra the Thomas Paine “The Rights of Man”, e são formadas várias sociedades que exigiam o voto universal.

    Multiplicavam-se as manifestações públicas e uma delas , realizada em Agosto de 1819 em Manchester, foi atacada pela policia que causou 11 mortos entre os assistentes. (no seguimento desse massacre, foi fundado um jornal local que chegou até aos dias de hoje com o nome “The Guardian”).

    Várias foram as reformas aprovadas no Parlamento sob a pressão da opinião pública e para, no dizer de Lord Grey na epoca primeiro-ministro, “prevenir a necessidade de uma revolução”.Mas as alterações foram sempre modestas, por exemplo no Acto Parlamentar de 1832 só podiam votar homens que fossem proprietários de bens com um valor minimo de £ 10 (à epoca uma valor muito consideravel), o que impedia o voto de seis homens adultos em cada sete.

    Sucessivas Leis do parlamento, em 1867, 1870, 1884 não alteraram significativamente o facto de poder politico continuar essencialmente nas mãos da aristocracia. Por exemplo, em 1870 apenas dois em cada cinco adultos do sexo masculino tinham direito a voto.

    Foi preciso esperar por Fevereiro de 1918 para ser consagrado na lei o sufrágio universal e o direito de voto às mulheres, (mas só se estas fossem maiores de trinta anos…).

    Portanto se não houve revolução e se os aristocratas conservaram as suas cabeças, não se deveu à Democracia, mas sim ao carácter sereno do povo, o mesmo caracter que hoje permite que a nova aristocracia do dinheiro não se sinta grandemente ameaçada pela miséria crescente.
    Manuel.m

    PS: Isto não obstou porém que George Bernard Shaw um dia tenha dito :

    “The more I see of the moneyed classes, the more I understand the guillotine…”

    • ppicoito diz:

      É verdade que a democracia britânica começou por ser censitária, mas a democracia começou sempre por ser censitária (até em Atenas). É verdade que em 1780 havia apenas 200 mil eleitores em Inglaterra, mas em França não havia nenhum (aliás, a “representação” era assegurada, não por um Parlamento nacional permanente, mas pelo clero, nobreza e povo em Cortes convocadas pelo rei quando lhe apetecia). É verdade que a aristocracia britânica manteve durante muito tempo o seu poder de facto mas era mais aberta do que no Continente e sofreu mais cedo do que no Continente a concorrência política da “burguesia” (vamos simplificar). Etc. Abstenho-me de lhe recordar o que se passava no resto do mundo em 1780, 1870 ou 1918. Se quiser continuar a rir, claro.

      • fernando antolin diz:

        Chapeau !!

      • manuel.m diz:

        E continuo, a sorrir pelo menos, porque o que está em causa é a afirmação que não terá havido revolução em Inglaterra identica à francesa nos finais do Sec. XVIII porque o “povo” detinha um poder de facto sobre a aristocracia, que necessitava do voto popular para aceder ao parlamento e exercer o poder politico.
        E isso, meu caro, é pelo menos wishful thinking.

      • caramelo diz:

        O manel tem razão, menos na serenidade do povo inglês. Explicar isto com duas linhas do Toqueville, ainda por cima erradas, talvez não seja boa ideia. Para além daqueles que votavam, sobrava muito povo miserável e sem voto para assaltar o palácio. Por isso, a expressão “o voto do povo” tem que ser lido com muitos grãos de sal. O que acontece é que o povo andava mais entretido em divisões e guerras religiosas e nisso não eram meigos, durante as guerras civis. A pátria do Cromwell não era pacifica. E só por piada se pode dizer que a Inglaterra tinha uma sociedade mais aberta do que no continente. É sabido que o famoso e rígido sistema de classes inglês só começou a desfazer-se após a segunda guerra mundial, muito depois do continente, onde a nobreza já tinha perdido praticamente todo o poder. As terras, a base clássica do poder, eram praticamente todas da nobreza e mesmo a maior parte do comércio estava nas suas mãos. Nem vale a pena falar do poder politico, da representação no parlamento e no governo. Só no século XIX a house of commons começou a ter algum poder, para além de que mesmo essa casa era em grande parte controlada pelos lordes.

      • ppicoito diz:

        Valha-nos Deus. Estudem. Nunca é tarde e vão ver que não dói assim tanto.

      • caramelo diz:

        Também não é tarde para o Pedro começar a desintoxicar do Toqueville e agarrar-se mais à Jane Austen, de um lado, e ao Balzac, do outro, por exemplo. Aprende-se ai muito mais sobre História.

      • ppicoito diz:

        Sim, algumas pessoas aprendem aí muito mais sobre história.

      • Miguel diz:

        Essa deixa de ir estudar parece-me uma boa ideia. Já interpretar a história a partir dos comentários literários de aristocratas desocupados como o Alexis é um pouco mais perigoso. A propósito da relação pacífica entre o povo e a nobreza britânicas poderia contrapôr com citações do Malthus, do Ricardo, do Smith e outros prestigiosos intelectuais ingleses da época. São edificantes. Para não falar no Dickens, oh dear, a quem toda essa linha de raciocínio Tocquevilliano passou completamente ao lado. Numa linha mais científica The Making of the English WOrking Class do Edward P. Thompson apresenta-nos uma perspectiva um pouco mais, como dizer, realista.

      • ppicoito diz:

        Ninguém falou em relação pacífica. O E. P. Thompson era, como dizer, membro do partido comunista inglês, o que o torna talvez menos, como dizer, realista do que gostaria. E se do Tocqueville só sabe o que leu na wikipedia, talvez deva mesmo aproveitar a deixa e ir estudar um bocadinho.

      • Miguel diz:

        Li o próprio, caro Pedro.. Provavelmente não leu o Thompson porque era marxista. Muito científico, sim senhor.

      • Miguel diz:

        Já agora também desqualifica o Hobsbawn en passant. Grande caixote de lixo, sim senhor.

      • ppicoito diz:

        li o Thompson e o Hobsbawm. O que não direi é que eram comunas desocupados só porque não me agrada o que li.

    • ppicoito diz:

      Não, porque eu não disse isso. E muito menos o Tocqueville. Mas deixe lá, não quero desarrumar-lhe a história.

    • Miguel diz:

      Não era um insulto, como bem sabe. Era essa mesmo a sua origem social (de família aristocrata e ultra), meio social onde a maioria dos seus membros eram mesmo desocupados, sinal aliás de distinção social à época, e do qual ele se elevou através de um brilhante trabalho intelectual (quem lhe disse que não gostei de o ler?). Simplesmente, os problemas teóricos que enunciou, bem como as descrições sociais que levou a cabo, eram essencialmente distintos e muito afastados das questões que afectavam a vida do povo. Daí os meus reparos, e as fontes que sugeri em alternativa.

      • ppicoito diz:

        Deixe cá ver: o principal problema teórico enunciado pelo Tocqueville é a democracia moderna. Não percebo como é esta questão não afecta a vida do povo. Ou até percebo. Está a falar certamente do povo do qual estavam próximos o EP Thompson e o Hobsbawm: o povo soviético. Tem razão, a democracia não afectava muito a vida do povo soviético.
        Já agora, também não percebo como é que diz que a origem social de uma pessoa condiciona as suas preocupações. Pensava que só os aristocratas diziam isso.

      • caramelo diz:

        Order! Order! Gentlemen, isto começou tudo com aquela malfadada frase atribuída pelo most honorable Pedro ao messieur de Tocqueville. A frase apenas teria de ser metida no seu contexto, de época e de classe, para ficar a coisa clara. Não se lhe exigia mais, sendo ele e a época o que eram e as coisas sendo o que são. Por exemplo, toda a gente toma como certo que a Magna Carta estabeleceu as bases das modernas constituições politicas, esquecendo que a única coisa que de facto estabeleceu à época foi um equilíbrio de poder entre os homens livres, que eram poucos, e o rei. Obviamente, ninguém hoje assinaria aquele papel. Tudo tem de começar por algum lado, mas o principio de que todos os homens são iguais, sem distinção de classe, etc etc,. é outro momento fundacional, ou seja, é de outra qualidade.

      • ppicoito diz:

        É absolutamente extarordinário como desvalorizam a tese do Tocqueville, aliás muito mais crítica do seu “meio” e “classe” do que tudo o que possam dizer, apenas porque ele é um aristocrata. Isso tem um nome: preconceito. Se vier de um conservador, claro.

      • Miguel diz:

        Você desvaloriza o trabalho do Thompson por ser comunista; em seguida acusa-me de desvalorizar o trabalho do Tocqueville (que eu disse admirar o valor) por ele ser aristocrata. Bom, na verdade não posso acusar o venerável Pedro de facciosismo já que mostra na prática ser capaz de seguir a metodologia de Marx, Groucho. 😉

      • ppicoito diz:

        Eu não desvalorizo o Thompson. Pelo contrario, até já o citei em trabalhos meus. O que disse, e repito, é que discordo dos seus pressupostos ideológicos e do seu repelente apoio a uma megatirania. Ah, e não sou venerável, nem mesmo por piada. Ainda conto fazer muitas asneiras antes de chegar ao Panteão.

      • Miguel diz:

        Agora mais a sério, Pedro. O que você não está a perceber é que eu considero que a análise de um homem, mesmo brilhante, não esgota a realidade social. Na mesma medida em que ninguém se lembraria de invocar Einstein para explicar toda a física moderna com o argumento que ele teorizou os aspectos fundamentais do movimento e da estrutura da matéria que são afinal a base de toda a física. Ele não abordou todos os problemas relevantes e daqueles que abordou não considerou todos os aspectos. Genial, mas humano. Mutatis mutandis para o Tocqueville e camaradas.

      • caramelo diz:

        Eu não tenho preconceito nenhum contra a aristocracia. Ser aristocrata não é uma ideologia, é uma condição social. Simplesmente, a pertença a um certo meio, que se transmite de geração em geração, pode condicionar a forma como se vê o mundo, de uma forma mais forte do que a ideologia (desconto aqui os casos de manifesto desprezo pelas classes inferiores e os tiques de classe). Há quem se eleve. O Orwell pertencia à aristocracia (media baixa), uma condição de que não se saia, mesmo perdendo-se tudo o resto, e nem por isso deixou de denunciar a pobreza e desigualdades o seu pais, de uma forma que não passava pela cabeça do Tocqueville, embora este de facto se tenha destacado o seu meio, até um certo limite. Não interessa se o Thompson e o Hobswham são ou não comunistas; desde que mantenham a integridade intelectual,são uma fonte muito mais fiável do que o historiador Tocqueville. Já o Engels tinha feito um relatório sobre a classe operária inglesa, que se pode ler com muito proveito.

      • Miguel diz:

        caramelo, subscrevo (Orwell é um bom exemplo). dito de outra maneira: qual a relevância do Thompson ser comunista para saber se a descrição dele é justa e informativa? Nenhuma. Era como dizer que a teoria da relatividade está errada porque o seu autor tinha pressupostos filosóficos que o levaram a enganar-se no que diz respeito à mecânica quântica. Curiosamente, esses “erros” de Einstein vieram a revelar-se muito úteis posteriormente no estudo da mecânica quântica. A ciência dura aqui dá um bom ensinamento: não são os autores e as suas idiossincrasias que interessam, são as suas obras e as suas contribuições.

      • Miguel diz:

        Pedro, apenas uma nota de rodapé. Eu não sou “scholar” de História, por isso não tenho todos os detalhes relevantes presentes, preciso de os ir buscar quando necessário. Por isso, quando o Pedro falou do partido comunista inglês e a URSS etc e tal, eu aceitei a sua informação, e fiz uma pequana nota mental. Acontece que no prefácio de François Jarrige à obra supra-citada (tenho uma tradução francesa muito recente) consta que Thompson deixou o pc inglês em 1956 revoltado com a invasão soviética da Hungria. Convém ter cuidado em deixar a informação completa no que esta tem de pertinente.

  4. XisPto diz:

    Meus senhores, não há nada de errado na aristocracia do espírito. E para a digestão difícil de certos efeitos perversos do formalismo da democracia o fairplay desportivo (outra invenção dos aristocratas) serve. Obrigado pela elegância dos v/ posts.

    • ppicoito diz:

      A aristocracia do espírito nem sempre coincide com a aristocracia no poder. E a correcção dos efeitos perversos da democracia não começa apenas na Câmara dos Lordes ou no campo de jogos de Eton. Repito: nem sempre e apenas.

      • manuel.m diz:

        Registe-se a nostalgia pelos tempos em que cada um sabia o seu lugar, e que “os efeitos perversos da democracia” ainda não se faziam sentir. Realmente foi a tal Liberté, Egualité et Fraternité que deu cabo de tudo.
        Escapa-me no entanto completamente o que os campos de jogos de Eton têm a ver com o assunto.

      • ppicoito diz:

        É natural. Se soubese escrever égalité já não lhe escaparia.

      • veronica santos diz:

        🙂

  5. Miguel diz:

    “a nobreza britânica não acabou na guilhotina”

    Pois, de facto é verdade que não usaram a guilhotina para cortar a cabeça ao Charles I.

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