Graphe asebeia: referendo, democracia e governo

Respondendo com gosto ao repto do Miguel Serras Pereira (se consigo ou não é outro osso),  vejamos então, recusando qualquer tendência de equidistância:

Imaginemos , usando  a velha grelha de  Rawls ,do véu de ignorância, que desconhecemos  os nossos interesses particulares e examinemos a justiça da participação popular  na decisão. Ou seja, independentemente do cálculo quanto ao resultado, analisemos   o direito do povo de se  pronunciar sobre  assuntos  de natureza social. Tomemos com razoável que adoptar uma criança  não é um direito humano, mas tomemos também  como razoável que  a questão está em saber se podemos restringir a adopção a uma orientação sexual específica.

A própria possibilidade de suscitar o referendo sobre a adopção gay  significa a suspeita de asebeia, ou seja, da existência de um comportamento reprovável à luz da moral divina ou social.  Não se referendam os direitos laborais dos homossexuais. Muitas comunidades decidiram que a matéria é referendável : eslovenos sobre  a adopção  croatas sobre o casamento  e irlandeses, que decidirão  sobre o casamento em 2015 . Podemos concluir que não é estranha a vontade europeia ( nos EUA têm  ocorrido  vários) de referendar assuntos de natureza social, não podemos concluir que esse instituto é bom em si mesmo.

Aristóteles ocupa-se com minúcia  da regulamentação da vida privada ( Política, VII: 1335-1336b):  o casamento de jovens ( sémen ainda em desenvolvimento), a compleição física dos pais,  o adultério ( pena de atimia se durante o período fértil) e muitos outros detalhes. Temos, portanto, que a democracia directa não impedia a intromissão no quarto de casal, mas também  verificam os mais distraídos, que, mesmo sem Fátima e crucifixos, uma sociedade altamente politizada ( sem partidos et pour cause) podia arrogar-se de se ocupar  de tais assuntos.

 Que fique claro que se queremos  combater a violência organizada do Estado, temos de desenvolver armas poderosas, apropriadas à magnitude da tarefa ( Delo Truda N°17, October 1926, pp. 5-6). Esta pequena declaração de Makhno  descobre o terreno. Se é entendido pelos defensores das causas LGBT que em todo o lado o   Estado  tem exercido violência sobre os homossexuais, então não pode ser o Estado, através  do poder legislativo, emanado  dos mecanismos  de representação  partidária, a libertá-los. Significa isto que referendar a adopção gay é bela e maravilhosa participação popular ? Não. É desnecessário utilizar um possível referendo à adopção gay como bandeira de uma governação participada, porque ela não existe. 

A graphe asebeia ( acusação  pública) reside na artificialidade com que são utilizados os écrans. Os partidos cativam o poder legislativo, impondo a velha chantagem de que sem eles seria o caos, como se não pudessem coexistir diferentes estruturas de representação. A confusão instalada espelha as contradições  de uma  elite  político-burocrática que rege o direito do subalterno a falar ( roubando a coisa a Spivak), dessa forma reforçando a condição de subalternidade do povo, voire, de uma existência concedida.