Uma amostra da densidade de Malick pode encontrar-se logo nas cenas iniciais da Essência do Amor. Um casal percorre, em descapotável e em patente estado de felicidade romântica, a estrada que conduz ao Mont Saint Michel, o célebre mosteiro na costa da Normandia que os franceses conhecem por la merveille.
Ela vive em França com a filha, fruto de um anterior casamento, e ele é um americano de passagem, saberemos mais tarde. O filme, que começa com os dois em Paris, nunca nos dá a conhecer os seus nomes, nem como se apaixonaram, nem o que fazem ali, mas a sinopse diz que a mulher, interpretada por Olga Kirulenko, se chama Marina e o homem, interpretado por Ben Affleck, se chama Neil. In media res, visitam o mítico local no pico do romance. O título original do filme está já aqui: To the Wonder é o caminho que os leva à “maravilha”.
Mas a maravilha não é só o cenário paradisíaco do amor – é o próprio amor. E este paraíso, por sua vez, cita outros paraísos, perdidos ou em vias de se perder pela inexorável marcha de uma tragédia grega, na filmografia anterior de Malick:
a bucólica e isolada mansão no meio da pradaria, em Days of Heaven, antes da praga de gafanhotos e do homicídio do patrão/marido;
a ilha tropical em que se esconde o soldado desertor, em harmonia com os homens e as coisas, antes de ser apanhado e devolvido ao absurdo da guerra;
a aldeia índia em que o conquistador europeu, longe dos seus companheiros, conhece e ama a princesa nativa, antes da separação e do posterior afastamento de ambos;
a casa da família em The Tree of Life, cheia de deslumbramento e paz antes da morte do irmão e do fracasso do pai.
A associação entre amor, casa, natureza e inocência, por um lado, e violência, separação, orgulho e castigo, por outro, constitui um thopos literalmente central no cinema de Malick. O espaço e o tempo fluem entre esses pólos opostos. De algum modo, os seus filmes são sempre variantes do mesmo tema: a expulsão do paraíso.
As citações, no entanto, não ficam por aqui e evocam os mais vastos recursos da alta cultura para dar sentido(s) a narrativa. A própria referência ao Mont Saint Michel pode entender-se como uma citação. São Miguel, segundo a tradição cristã, é o chefe da milícia dos anjos. No início dos tempos, derrota Lucífer e lança no inferno os demónios, anjos caídos, como mostra uma iluminuras do Livro de Horas do Duque de Berry (c. 1410) em que se vê precisamente o monte do qual é padroeiro e o diabo sob a forma de um dragão.
São Miguel guarda as portas do céu e pesa as almas dos mortos no juízo final, abrindo o paraíso aos eleitos e precipitando os condenados no abismo, cena que conhece inúmeras versões na arte cristã, entre as quais a seguinte, de Hans Memling, por volta de 1470.
O Mont Saint Michel remete, portanto, para as ideias de ascensão e paraíso. A cosmologia medieval, de resto, situa por vezes o jardim do Éden no alto de uma montanha, tradição de que a Divina Comédia de Dante se faz eco ao localizar o paraíso no cume do purgatório, um monte pelo qual as almas sobem através da purificação (ou purgação). Em 1465, Domenico di Michelino representava assim o universo dantesco, com o monte do purgatório ao fundo, encimado pelo jardim de Adão e Eva, e o poeta cá em baixo, entre as portas do inferno e as portas de Florença.
Tal como as almas ascendem ao céu subindo uma montanha purificadora, tanto no sentido físico como simbólico, também o percurso de Marina e Neil no Mont Saint Michel é ascensional. Eles sobem à merveille (To the Wonder…) por degraus estreitos e íngremes como os círculos do purgatório de Dante, entre paredes milenares e arcos de pedra que simbolizam a eternidade do verdadeiro amor,
abraçando-se e contemplando a paisagem encantada que os separa do resto do mundo, espaço exterior à sua felicidade,
até atingirem a igreja, banhada pela luz celeste que entra por altos vitrais, e o claustro, jardim fechado que os une e encerra no círculo do desejo mútuo, símbolo edénico de um amor ao mesmo tempo nascido da graça e da natureza. (E atenção a este paradoxo caro a Malick, uma das chaves do filme.) Eis Adão e Eva antes do pecado original. O amor é um regresso ao momento da criação, uma ascensão rumo ao espanto renovado diante da maravilha – to the wonder. É Inverno, está frio e cinzento, a terra ficou para trás e as águas cercam o paraíso, mas o que a sequência nos transmite é o calor da paixão e a beleza do universo, porque tudo vemos pelos olhos de quem ama. (cont.)
PP