Subsídios para uma fenomenologia da porrada

Leio o que Luís e o Filipe escrevaram aqui em baixo e pergunto-me: seremos assim tão diferentes dos Espanhóis? E porquê? Sim, eles têm cargas policiais e a ETA, nós temos uma pequena que dá abraços ao robotcop e o Gualter que dá cabo de um campo de milho transgénico entre duas passas de haxe (o que é menos violento, sem dúvida, do que dar cabo de um campo de haxe entre duas passas de transgénicos). Mas as palavras de ordem são as mesmas. Eles queixam-se dos políticos, da troika e do desemprego, nós também. Eles descem a avenida aos milhares, nós também. Eles manifestam-se no Parlamento, nós também. Então porque é que lá acaba tudo à porrada e cá não?

Dir-me-ão que é por causa dos “brandos costumes”, mas não acredito. Primeiro, porque desconfio sempre de psicologias colectivas, sobretudo quando servem para explicar diferenças nacionais. Segundo, porque um olhar à história mostra que nem sempre fomos assim.  O final da monarquia e a I República foram momentos não só muito violentos, mas em que a violência era um meio político corrente. Basta lembrar as coisas que se escreviam nos jornais (Guerra Junqueiro sobre o rei D. Carlos, por exemplo), a ditadura de João Franco, o regicídio, o assassínio de Sidónio Pais, a brutal repressão do sindicalismo, a infame “Noite Sangrenta” que nada fica a dever à “Noite de Cristal” nazi ou à “Caravana da morte” chilena, a frequente liquidação de adversários sob os mais variados pretextos. Podemos até recuar à Revolução Liberal, à reacção miguelista, à guerra civil e aos correspontes ajustes de contas (que provocaram proporcionalmente mais exilados e presos políticos do que em qualquer outra época da história de Portugal, diz Rui Ramos, talvez para irritação do Dr. Loff quando ler essa parte),  à Patuleia, à Maria da Fonte, às guerrilhas durante anos activas por todo o país e aos golpes de Estado só caídos em desuso com a Regeneração. E às brutalidades da crise de 1383-85 (o linchamento do bispo de Lisboa, narrado por Fernão Lopes, entra para qualquer antologia do horror indígena), ao massacre dos cristãos-novos de 1507, às revoltas populares antes de 1640, ao motim dos lavradores do Douro contra Pombal, que pôs o Porto a ferro e fogo e o Marquês afogou em sangue,  à caça ao Francês aquando das invasões napoleónicas.

Brandos costumes? Não me parece. A explicação talvez seja outra. Ou outras, porque me ocorrem duas.

A primeira é ausência das polarizações políticas, étnicas, religiosas e nacionais que caracterizam tantas sociedades contemporâneas. Em Portugal, há uniformidade étnica e religiosa (a esmagadora maioria da população é branca e católica), não existem movimentos independentistas ou terrorismos contra o Estado central, a extrema-direita e a extrema-esquerda são pouco representativas, a própria violência da “rua” (a “tradição da barricada”, de que fala Furet, tão típica da França desde 1789)  concentra-se no século XX em pequenos núcleos operários facilmente controláveis pelo poder. Chegados ao ano da graça de 2012, ninguém tem razões identitárias para odiar o próximo. Excepto no futebol. Uma sensaboria doméstica que tira a vontade de bater na bófia,  a não ser como parte da animação cultural inerente à modalidade.

A segunda explicação é histórica. Ao contrário da ditadura franquista, que nasceu de uma Guerra Civil com centenas de milhares de mortos e em que se cometeram as maiores atrocidades, o Estado Novo impôs-se com um suspiro de alívio e pacificou a sociedade com o seu “viver habitualmente”. Não estou a “branquear” nada, mas a repressão tornou-se mais difusa do que nos regimes fascistas e comunistas comparáveis. Mais do que eliminado, o “reviralho” foi silenciado. A resposta à violência fascista com a violência revolucionária manteve-se (e mantém-se) na retórica do PCP e de outros grupúsculos da extrema-esquerda, seja nas FP25 ou na luta contra o “pacto de agressão” da troika , mas foi abandonada pelas restantes forças políticas. O que explica, por sua vez, que o 25 de Abril e a democracia tenham triunfado sem violência, ou com uma violência muito relativa. Esta renúncia a formas extremas de luta política marcou a nossa história recente. E ajuda a perceber os “brandos costumes” do bom povo lusitano. Quem quer pancada vai à bola, ora aí está. Valha-nos isso.

PP

13 thoughts on “Subsídios para uma fenomenologia da porrada

  1. palavrossavrvs diz:

    Muito bem, Pedro. Hoje é um bom dia para me apaixonar intelectualmente por ti introduzindo o meu membrudo raciocínio neste post. Agora somos quatro numa espécie de bolinho de bacalhau de amor intelectual: tu, eu, o Luís e o Filipe. Já éramos estreitos nós os três. Faltavas tu. LOL

    Agora a sério: nós simplesmente substituímos a violência anti-institucional numa violência difusa, social, horizontal. Depois há outra coisa ainda mais poderosa e dissuasora: antes que nos queixemos e abrasemos a rua, vem a EDP, vem a GALP, vêm as Águas, vem o Gás, vem o Fisco, vêm as PPP, vêm as Taxas moderadoras, vêm as facturas ranhosas das SCUT, vai e vem o caralho de quanta injustiça e esmifranço o Planeta Terra já viu. Recebemos tanto malho, flagelam-nos e desmoralizam-nos de tal modo que não há energia moral, mental, para lhes resistir sem um rasto de má consciência, tirando uns fogachos mal direccionados do tipo «Passos Gatuno» ou «Pinóquio, Ladrão, Fodeste o Povo ou não?»: se não consigo pagar toda esta merda, o defeito só pode ser meu, que não emigrei, que não estudei, que não me fiz político nos anos fáceis de Cavaco ou nos anos pauis de Guterres, que não soube fazer como Relvas, que não tive engenho de extorquir como Sócrates, que fui habilidoso e ratazanal como Dias Loureiro, que não soube adoecer e arrepender-me de roubar muito, no tempo certo, como Oliveira e Costa.

    Portanto, como poderei ser violento e danado de raiva, sangrando e cuspindo nas praças, becos e ruas se no fundo todo me compunjo por não ter tido, como me competia, máxima lata e competência técnica para ser como um Mário Soares, um Vale e Azevedo, um genoma do Ricardo Espírito Santo Salgado?!

    E assim sucessivamente.

  2. João. diz:

    “Não estou a “branquear” nada, mas a repressão tornou-se mais quotidiana e difusa do que nos regimes fascistas e comunistas comparáveis.”

    Uma sondagem na Roménia teve 78% dos inquiridos a dizer que nem eles nem as suas famílias alguma vez sofreram durante o comunismo. E não foi uma sondagem feita pelo PC romeno, foi feita por uma instituto público romeno anti-comunista.

    57% dos alemães orientais numa sondagem de 2009 defenderam a DDR.

    Na Hungria 2 terços de inquiridos para uma pesquisa disseram o regime comunista era mais humano e seguro do que o regime de hoje.

    Talvez a história do comunismo ainda esteja por fazer e comece quando os historiadores deixarem de estar satisfeitos em repetir as narrativas do Dept. de Estado americano ou de serem patrocinados pelo Pingo Doce.

    • Jorge G. Nádegas diz:

      26.03.2007 – Salazar eleito “o maior português de sempre” em programa da RTP.

      • João. diz:

        Sim, eu já num comentário num blog de pessoal do PS escrevi que tinha a impressão que dada uma ruptura do regime e colocada em campo a opção entre fascismo e comunismo que Portugal provavelmente ia preferir o fascismo. Eu, pessoalmente, como comunista, não o prefiro mas julgo que a maioria do arco-governismo dada a necessidade de ter de escolher optariam pelo fascismo – incluo aqui o PS. Veja-se que não estou a dizer que PS/PSD/CDS são fascistas digo apenas que dada a necessidade de optar que optariam preferencialmente pelo fascismo – e digo isto porque o fascismo é o último reduto do capitalismo.

      • João. diz:

        Li o seguinte num comentário num blog:

        “Não há por aí uns corajosos para um governo apartidário e de cariz social independente? Doutra forma, só uma luz ao fundo do túnel: a do comboio que aí vem na nossa direcção.”

        É esta a estrutura da disponibilidade para um governo fascista. Provavelmente a pessoa que escreveu isto não é um fascista, provavelmente é alguém bem intencionado mas governos apartidários só podem ser governos descidos dos céus, governos de tons messiânicos. Um novo Salazar é para o que muita gente, nestes protestos por um governo dito apartidário, está cada vez mais madura.

      • António diz:

        Ok Joao….Isso explica porque durante esse periodo toda a gente queria salta fora e eram poucos (ou nenhuns) os que queriam entrar. A memória das pessoas é curta e por indignaçao ou frustraçao sempre afirma….”antes é que era bom”. Acontece a todos e mesmo com a nossa vida. Hoje muitas vezes penso que quando era miudo é que era feliz, mas quando tinha essa idade so pensava em ser “grande”. Muitos desses jovens revolucionarios nao fazem a minima ideia do que era viver num regime repressivo como o da europa de leste. Vivem no conforto das suas casas, mimados pelos pais e sonham com revoluçoes romanticas e lideres “caristmaticos” com quem, felizmente, nunca se tiveram que cruzar…. Em sondagens pela rua por Portugal seguramente uma maioria lhe diria que Salazar é que era, mas se o tivessem que fazer pelo voto, legitimando-o, lhe garanto que nao o faziam. O mesmo se passaria nesses paises…se realemente quisessem o comunismo de volta, já o teriam.

      • João. diz:

        “Em sondagens pela rua por Portugal seguramente uma maioria lhe diria que Salazar é que era, mas se o tivessem que fazer pelo voto, legitimando-o, lhe garanto que nao o faziam.”

        António,

        Deixemos de supor. Que se faça essa sondagem. Você garante, mas não tem ainda a sondagem que legitimaria essa garantia. Portanto, repito, que se faça a sondagem.

    • Tilili diz:

      Stockholmssyndromet

    • Exactamente, João. [Será este o João. que eu lia algures?… Não me parece.] De resto, o Pedro Picoito tem mostrado, aqui e elsewhere, ser um excelente exemplo de lacaio do Pingo Doce e de papagaio do Dept. de Estado. Tal qual.

      (Essa sua argumentação cairia nos braços das criaturas que invocam as “saudades” que o “bom povo português” já sente dos tempos “seguros” e “respeitosos” do dr. Salazar. Também haverá “sondagens” e “inquéritos” que mostram como as pessoas “sérias” e que “não criavam problemas” viviam mansamente no tempo do Estado Novo. Ora, como sabemos, há pessoas “sérias” e “não problemáticas” em todo o género de regimes zelosos do “bem comum”. Ámen.)

      • João. diz:

        Carlos, diria que sou esse João já que comento bastante no Cachimbo de Magritte.
        Veja que a sondagem na Roménia foi feita por um instituto anti-comunista, portanto não se trata de sindagens encomendadas pela esquerda. Na polónia, dado o surgimento do que agora se chama no leste nostalgia comunista, o governo proibiu qualquer símbolo comunista, ou seja, se você andar na rua com uma T-shirt do Che Guevara você está fora da lei.

        Depois não estou a dizer que o Pedro é um lacaio do Pingo Doce, a expressão é uma metáfora para falar de historiadores do comunismo que não incorporam na sua história estes recentes desenvolvimentos da opinião de quem viveu no bloco comunista, não incorporam o contraste entre dizer que se vivia numa prisão e o facto de muita gente de quem se diz ter vivido numa prisão vir dizer agora que viviam melhor no comunismo do que no capitalismo, ou seja, falo de uma história do comunismo que é ainda completamente subsidiária da propaganda anti-comunista da guerra fria cujo centro por excelência era o Dept. de Estado dos EUA.

        Em relação a Salazar se se fizer uma sondagem de opinião sobre a vida durante Salazar e a vida durante o regime actual, já com o conhecimento do que era o regime além da propaganda, e houver uma maioria de pessoas a dizer que se vivia melhor nessa altura o que podemos começar por pensar senão que o regime actual está a falhar?

        Os historiadores, comunistas ou de direita, podem dizer e escrever o que quiserem mas se a maioria das pessoas em Portugal que viveram os dois regimes insistir que se vivia melhor num regime do que noutro, se as novas gerações mesmo sem conhecer o regime absorverem essa opinião não podemos varrer para debaixo do tapete, quer dizer, podemos tentar mas se o regime actual se romper essa opinião vai vir ao de cima e pode ser determinante para o modelo que o vier a substituir. Os 40% que Salazar obteu na votação para maior português de sempre confirma a minha desconfiança sobre a tendência preferencial para o fascismo em vez do comunismo em Portugal em caso de ruptura do regime actual.

        E se o regime continuar a falhar, se não houver saída dentro deste modelo senão austeridade em cima de austeridade, desemprego em cima de desemprego, pobreza em cima de pobreza, você não julga que poderá muito bem chegar a altura em que a coisa se desintegra, em que podemos ter de chegar a optar entre uma solução fascista ou comunista? Eu penso que se seguirmos anos a fio nesta dinâmica de empobrecimento em que estamos que o regime vai ser colocado em causa. A solução alternativa que é a do PS explicitamente e também cada vez mais a do PSD e CDS é mais federalismo, coisa que a meu ver só poderia merecer o escárnio da esquerda portuguesa; é que o PS goza com o PSD por ser lacaio de Merkel mas esse maior federalismo apenas institucionaliza essa subserviência.

        Eles falam muito do modelo americano e como o Euro obriga a que caminhemos nessa direcção, mas o que temos vindo a assistir ao longo da história dos EUA é uma contínua conquista de poder do centro, de Washington, em relação aos Estados, não sei porque razão haveria de ser diferente na Europa. E quem seria o centro na Europa? A Alemanha, concerteza, coadjuvada pela França e talvez a Itália, mas com a Alemanha sempre predominante.

  3. caramelo diz:

    A nossa violência tornou-se difusa, fragmentada, essa é a diferença. Já não ocorrem multidões para matar o rei ou para tomar o forte, como na bastilha. Assim como faltam os chefes que hipnotizem o povo para o meter quieto no redil, porque curtos ciclos de quatro ou cinco anos não dão para tanto, também faltam os chefes revolucionários que o saibam conduzir à violência. A luta saiu da rua e tornou-se doméstica, em mais do que um sentido. É assim em toda a Europa. A violência que se vê em Espanha, Itália ou Grécia, é sempre provocada pelos mesmos, uns mais vitaminados e disciplinados do que outros. A diferença entre Portugal e esses países não é essa, mas sim a adesão do povo às manifestações e isso tem a ver com a consciência cívica.
    Numa crise económica, há um tipo de violência que surge com mais vigor, como o vírus da gripe em certas épocas do ano, que é o da luta de classes: um trabalhador que ataca um patrão, porque este o explora, respondendo à violência deste (aquela de que fala o Luis Jorge ali em cima) esquecendo que deve sentir medo e deixar-se cozer sem dor na panela a ferver, como os sapos. O que mais comove o povo, como sempre, é a desigualdade, e portanto, há uma forte possibilidade de em algum lugar neste preciso momento estarem exarcebadas as relações entre um trabalhador e o seu patrão. Por enquanto, ainda é um patrão que pode dizer: pá, aceitas duzentos paus por mês, sem contrato e sem descontos para a segurança social, ou vais bater a outra porta. Tenha ou não razão o patrão, isto provoca violência, nem que seja um coração a bater mais forte. Sendo que os patrões são os de sempre, e os trabalhadores agora são os pedreiros, as cabeleireiras ou os informáticos. E quem não tem trabalho, vira-se não contra aquele que o tem, porque é um igual com mais sorte, mas sim para aquele que nem sequer precisa de trabalhar, porque é rico. A estrutura é a mesma de sempre, não nos iludamos com a super-estrutura burocrática das novas formas contratuais ou com o facto de agora sermos todos amigos no facebook, que alguns tomam como o grande nivelador: O maior problema, aquele que conduz ou conduzirá à violência nesta Europa, entre gente com a mesma cor e a mesma religião, aquilo que chateia mesmo, é a desigualdade, que em Portugal é gritante. Os que acham que o estado social é um luxo, uma tarefa que não compete ao estado, deviam pedir o reforço da função da segurança. Peço desculpa pela linguagem.

  4. VF diz:

    Acho que tem a ver com a geografia, nada mais. Tirando a castanhada com os Espanhóis meia-dúzia de vezes, sempre estivémos num canto relativamente tranquilo. A violência é interna, familiar, disfarçada. Em Espanha há mais porrada nas manifs porque eles têm mais perroflautas.

  5. João. diz:

    Quanto à fenomenologia da porrada diria que quando o debate público, para o qual a blogosfera é hoje central, chegar a ser percebido como inútil e o regime se chegar a desintegrar parece-me que aí deslizaremos “back to basics” – para a rua com palavras de ordem e paus na mão. No caso, vai contar os que andam na rua, a contagem de espingardas, quem vencer na rua vence no palácio – dir-se-á que a maioria não veio para a rua mas nestes momentos é quase sempre assim, são quase sempre menos os que vão para a rua e os que lá estão contam pelo povo.

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