Revisionismos 6


Ontem, no Público , Irene Pimentel escreveu mais um capítulo da já longa polémica entre Manuel Loff e Rui Ramos (“A ditadura portuguesa e a sua polícia política”). Não vi qualquer eco do artigo na blogosfera, o que revela, talvez, alguma saturação do tema. Em substância, Irene Pimentel segue um esquema que já foi ensaiado por Ramada Curto e José Neves: aponta os erros de Loff e os erros de Ramos, sugerindo que ambos são os extremos ideológicos de uma historiografia cujo centro seriam eles próprios. Assim, diz Irene Pimentel, “tão errado é concluir que a ditadura salazarista nos anos 30 e 40 se assemelhava, na sua essência, ao nacional-socialismo alemão, sem ter em conta a diferença de monta que é a ausência de anti-semitismo na ideologia e no Estado salazarista, como faz Manuel Loff, como afirmar que a Ditadura portuguesa seria moderada, o que já em si é uma contradição nos termos, ou permitiria um pluralismo limitado ou contido, exemplificando com a existência, entre 1932 e 1934, de um partido fascista – o movimento nacional-sindicalista -, como faz Rui Ramos”.
Ao fim de três meses de debate, já ninguém se atreve a questionar as credenciais académicas de Rui Ramos, pelo menos em público (em privado é outra coisa, garanto-vos), nem a dizer que ele sonha com o regresso de uma ditadura, como fez Loff. A cidadania historiográfica foi-lhe reconhecida e a sua História de Portugal afirmou-se como uma obra de referência. Nesse sentido, pode dizer-se que Ramos venceu a polémica.Tal como previ no início, Loff fica muito mal na fotografia. De certeza que nunca imaginou ser comparado a Rui Ramos por colegas de “esquerda”… Mais do que isso, houve um claro recuo das críticas iniciais, que equivaliam a interpretação de Ramos do século XX português a um “branqueamento” do Estado Novo. No fim, exposto o disparate, os críticos apontam-lhe agora aspectos de pormenor dentro da grande narrativa, por exemplo a sua visão da guerra colonial.
É o que faz também Irene Pimentel, mas em relação à polícia política. Diz a historiadora: “eu própria fui surpreendida, ao detectar que a PIDE-DGS – na chamada metrópole – prendeu e matou menos do que eu pensava. Já a sua antecessora, a PVDE, entre 1933 e 1945, prendeu e matou mais do que a PIDE. A tentação, sobretudo se é voluntária e ideologicamente motivada, pode ser retirar daí a conclusão de uma “moderação” da ditadura portuguesa. Mas há outras explicações e factores explicativos.” E enumera-os: a ausência de uma sociedade civil forte, a eliminação anterior dos inimigos do regime, a necessidade de ocultar a violência política para entrar na ONU e na NATO, etc.
Ramos falha, portanto, em reconhecer a imoderação latente do regime, chamemos-lhe assim, porque é “ideologicamente motivado”. Irene Pimentel nota-o até num aspecto muito concreto: Ramos não usaria a palavra “tortura” para descrever “os principais métodos de investigação da polícia política”. Ora, “a escolha de certas expressões, em detrimento de outras, dá um tom a uma realidade, iluminado-a ou deturpando-a”. Ao referir “agressões verbais e físicas (especialmente a privação de dormir)” em vez de tortura do sono, Ramos estaria a “distorcer a realidade”.
Ninguém negará que as palavras contam. A história é feita de palavras e a sua escolha não é indiferente. Sucede, porém, que de tal premissa Irene Pimentel extrai conclusões duvidosas. É bom que se diga claramente que Ramos e Loff não estão em extremos ideológicos e Irene Pimentel, ou Ramada Curto, ou José Neves, no virtuoso meio. Também eles são “ideologicamente motivados” – só que a sua ideologia não é a de Rui Ramos. E poderia ser de outro modo? O historiador, que não pode fugir às palavras, também não pode fugir a uma visão do mundo. A grande questão, como sempre, é se as palavras e a ideologia de Rui Ramos nos permitem conhecer “a realidade” da ditadura. Irene Pimentel acaba por estar perto de Loff (lá se vai o meio…), quando acusa Ramos de “deturpar a realidade” do fascismo português. Mas Ramos descreve com minúcia a repressão salazarista, coloca a sua “moderação” no contexto dos regimes contemporâneos, incluindo “a ditadura comunista da Rússia ou a ditadura nazi na Alemanha” e conclui que, se “não houve o terror de massas inerente às revoluções sociais ou às depurações étnicas da época, ninguém escapou a uma coacção contínua e difusa”. É, afinal, o mesmo que diz Irene Pimentel, quando sublinha que a repressão salazarista conjugou três lógicas: a da prevenção, para toda a população; a da correcção, para quem fazia oposição política mas não era uma ameça ao regime; e a da neutralização, para os inimigos do regime, sobretudo os comunistas. Ramos também as refere, mas por outras palavras. Isso dá outra sensibilidade, ou outro “tom”, à sua análise da tortura? Pode ser que sim. Até pode ser que essa sensibilidade diferente, não necessariamente menor, tenha razões ideológicas. O que não se pode dizer é que ele silencie, apague, omita ou desvalorize a tortura.
A questão, portanto, é de palavras e não de realidade – embora as palavras, repito, sejam essenciais para conhecer a realidade. As críticas a Ramos, que começaram com acusações de protofascismo, são agora de “tom”. O que se discute, no fundo, é se a história “ideologicamente motivada” de Ramos transmite ou não o “tom” certo da tortura e, portanto, da repressão política. A esquerda do meio virtual (e não virtuoso) tem essa sensibilidade, em grande medida porque faz parte da sua identidade histórica. O que se lhe pede agora é bom senso: o bom senso de reconhecer que, em democracia, não há uma versão única da história. Três meses depois do início da polémica e quarenta anos depois do 25 de Abril, talvez este seja o nosso combate pela liberdade – a liberdade de pensar.

PP

10 thoughts on “Revisionismos 6

  1. Vasco Silveira diz:

    Caro Pedro

    Acompanhei esta polémica no mundo dos blogs ..
    Como interessado na história, e paixonado pela nossa história, quero felicitar o autor dos dois posts mais esclarecedores e honestos sobre o assunto. Aprendi muitto com eles: sobre a história, e sobre as pessoas que a fazem.
    Julgo que, ao ler história, não podemos nunca esquecer o escrito de G Orwell sobre a a ligação entre o presente – passado – futuro (1984 ? )

    Um abraço e muito obrigado pela “lição” .

    Vasco

  2. cristiana fernandes diz:

    Com todo o respeito, acho que é uma polémica que apenas convoca os académicos – não em qualquer efeito útil para o comum dos cidadãos.

    • ppicoito diz:

      Com todo o respeito, está enganada. A polémica é sobre a liberdade no espeço público. E isto não só é util para o comum dos cidadãos, como é um dos pontos básicos da democracia.

  3. ppicoito diz:

    Tem pouco. E tem que lutar por ela.

  4. Muito bom, Pedro.
    Abraço

  5. PC diz:

    Bom post, Pedro. Em certo sentido, nenhum cientista ou investigador está vez alguma “no meio”. Mas as coisas têm nomes próprios e a investigação dá-se mal com eufemismos. Que diríamos se alguém “historiografasse” que a União Soviética “deixou morrer” muitos opositores políticos no gelo dos Gulags…? Definitivamente, não é uma questão de tom.

    • ppicoito diz:

      De acordo, mas Rui Ramos não recorre a eufemismos: ninguém poderá dizer que ele omite a censura, a PIDE ou a tortura. A questão é que o faz comparando a ditadura portuguesa com outras da mesma época, incluindo a Unisão Soviética, e com a I República. É isso que os historiadores de esquerda não lhe perdoam, porque para eles o salazarismo tem um carácter único, absoluto e incomparável. Esse carácter de mal absoluto do salazarismo faz parte do mito fundador da esquerda portuguesa que se define, como em toda a Europa pós-1945, pelo antifascismo. Relativizar (ou contextualizar) o salazarismo é pôr automaticamente em causa a sua bondade absoluta. Loff e os que criticaram Rui Ramos sabem isso muito bem. Este é o ponto central da polémica. O resto (palavras, tom, eufemismos, etc.) é uma tentativa de acusar Rui Ramos de falta de rigor científico, quando o fundo da questão é político.

  6. ppicoito diz:

    “a sua bondade absoluta” = a bondade absoluta da esquerda, evidentemente.

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