Uns dos sintomas do crepúsculo da imprensa, tal como o enumero aqui, é a resistência a perguntas interessantes. Atribuo o fenómeno à imaturidade das redacções e ao entrincheiramento político dos jornais — o que conduz a uma valorização ardente do cretinismo — mas talvez outros motivos me escapem. Inúmeras falhas ocorreram durante a discussão pública sobre o casamento gay.
Vou usar um trecho deste post do Pedro para ilustrar o meu raciocínio:
O que me surpreende, quase meio século depois do Maio de 68, é que as posições parecem inverter-se. Os conservadores manifestam-se nas ruas e os progressistas batem-se por uma instituição burguesa. Tanto tempo depois, “l`imagination au pouvoir” é agora “le mariage pour tous”. Talvez porque, “au pouvoir”, “l´imagination” aspira a tornar-se respeitável. Os que ontem defendiam modos de vida alternativos, hoje eles próprios na década dos 60, querem que o amor seja reconhecido no papel.
Eis uma boa questão que tem escapado à análise da imprensa. Por que carga de água aspiram os homossexuais ao reconhecimento legal das suas relações? Mais, por que lhes quererão chamar “casamento” em vez de outra coisa qualquer — “outra coisa” que apaziguaria os conservadores, ainda que o seu estatuto jurídico fosse equivalente? Por outro lado, o que levará um heterossexual conservador a querer o casamento só para si? A figura jurídica ficaria maculada pela extensão às relações homossexuais? O casamento, tal como existe, será menos precioso para os cônjuges Bernardo e Marisa se os vizinhos António e Jacinto o puderem invocar nas mesmas circunstâncias? Porquê?
Finalmente, o que conduzirá tantos intervenientes na polémica sobre o casamento gay ao evitamento destas perguntas tão simples? Nas barricadas invocam-se grandes valores, como “a dignidade”, “o princípio da igualdade”, “o respeito” ou “a respeitabilidade”, “a sacralidade dos laços do matrimónio”, e recorrem-se a teorias sobre “o que é natural”. Mas ninguém responde a isto: porque querem os conservadores o monopólio do casamento? Porque desejaram os homossexuais extinguir, em combates tão árduos, esse monopólio quando “a outra coisa” — uma união de facto, por exemplo — estava ao seu alcance de um modo higiénico e sem espinhas?
Em suma, digo eu: porque vivemos num mercado de valores em que os estilos de vida concorrem por princípios de legitimação.
Entra Michael Porter. Numa das suas obras seminais sobre a estratégia das organizações, o autor defende que só existem três maneiras de triunfar num mercado: custos baixos, diferenciação e foco. Proponho que o invoquemos um pouco à bruta como parábola para o percurso que desembocou no casamento gay.
Momento 1: até à primeira metade do século XX, no Ocidente, os homossexuais foram activamente perseguidos pela leis em vigor. Ser homossexual era um pecado e um crime. O único modo viável de defender os interesses deste grupo era a sua organização em nicho, o que corresponde à estratégia clássica de enfoque. O princípio de legitimação era interno (ou remoto, como “a antiguidade clássica”), o seu escopo era limitado aos próprios homossexuais. Imperava o secretismo. Não se procurava “o reconhecimento”, excepto em ambientes protegidos: as artes, uma pequena parte da academia, a boémia, etc. Mas esses ambientes foram responsáveis por uma inversão de valores que deu à causa esperança e aspirações.
Momento 2: A despenalização dos comportamentos homossexuais permitiu ao movimento alargar o seu apelo. Mas a rejeição pública era vasta (ainda é: pensem na imagem de dois homens a beijarem-se), pelo que optou por uma estratégia de baixos custos: ser homossexual era “normal”, apenas isso. “Assumir” a homossexualidade era já uma vitória. Ter um círculo de amigos heterossexuais, ser “aceite” por eles, ou defender “o direito à privacidade” pareciam boas alternativas para a legitimação do movimento. Como ocorre frequentemente com as estratégias de baixo custo, a proposta de valor para os beneficiários era reduzida: ser “reconhecido”, mas com estatuto de menoridade jurídica. Enfim, “não incomodar”.
Momento 3: O movimento gay ganha visibilidade, a sua associação a novas profissões (comunicação, cinema, vida nocturna etc.) transforma-o numa “moda”. Ser gay é “cool”. É fazer parte de um estilo de vida glamoroso. O apelo é reforçado por uma linguagem própria, por um gosto sofisticado, por hábitos de consumo de classe A. O grupo adopta, portanto, uma estratégia de diferenciação. Como geralmente acontece, essa estratégia tem custos altos: a legitimação dos homossexuais provém da sua “excepcionalidade”. Os conservadores assustam-se. Mas não há muito espaço para o gay “normal”, que mora em Rio de Mouro, vê o Benfica e gosta de caracóis. Michael Porter deixa de nos poder ajudar.
Surge um problema estratégico recorrente: devemos ser assim tão diferentes? Alguns “teóricos institucionalistas” como Paul DiMaggio e Walter Powell defendem que em certos mercados a interacção é mais eficiente quando a legitimidade do actor é reconhecida pelos outros. É mais fácil, para quem nos rodeia, relacionar-se connosco se não formos “estranhos”, o que reduz a margem de incerteza da nossa própria acção.
É plausível que o movimento gay tenha uma noção intuitiva de que uma estratégia de diferenciação (até pelos seus elevados custos) já não faz sentido. Em vez disso, justifica-se agora uma estratégia de apropriação institucional. Ou seja, os gays querem voltar a ser “normais”, mas com o benefício acrescido do reconhecimento público. Querem casar, transfigurando a noção de casamento. Querem adoptar, herdar e aceder ao mainstream das sociedades democráticas. O sistema de valores que defendem pode agora competir directamente com os valores do conservadorismo ainda dominante.
Ora, o que perturba os representantes do conservadorismo é isto: a possibilidade de, perante a competição de um novo sistema de valores agora legitimado, serem forçados a percorrer o caminho inverso do do movimento gay. Isto é, a reduzirem o seu apelo a um nicho, ou a uma “elite”, perdendo assim alguns dos traços identitários que lhes são conferidos pela sua actual “normalidade”. Em resumo, é um problema de poder.
Nota: como Mark Twain, deixo o texto longo (e descuidado), porque não tive tempo de o escrever curto.
Luis M. Jorge
Luís, não é que interesse muito, mas essa nota que atribui ao Mark Twain eu conhecia-a como sendo do Voltaire. Às tantas, não é de nenhum, será um daqueles casos em que a autoria.se perdeu no tempo.
Tem razão já vi atribuída a ambos.
http://quoteinvestigator.com/2012/04/28/shorter-letter/
Thanks.
É sempre uma questão de poder. O território é a mais velha luta da humanidade.
“É mais fácil, para quem nos rodeia, relacionar-se connosco se não formos “estranhos”, o que reduz a margem de incerteza da nossa própria acção.” Claro, paga-se uma elevada factura por não se ser “normal”, e não se ser normal pode tão simplesmente ser…ser solteira.
Acho a sua análise interessante e julgo que verdadeira, acrescentaria apenas que por ainda fragilizados o convencional impoe-se (quando nos magoam precisamos mais de aprovação do que quando estamos bem talvez ainda estejam magoados e com sede de poder e delimiar territorio, institucionalizarem-se).
Sopas e descanso, é?
Hi, “Jasus”!…cruz, credo!
Parece que alguém acabou de ler os “Lusíadas”, exalta-se com o espiríto da epopeia, e toca de tentar emular o Luiz Vaz com uma crónica de uma viagem de ida e volta ás Berlengas, em iate com ‘skipper’ a partir de uma marina, sei lá…. perto daquela Praia onde a Embaixadora Ana Gomes diz que foi.. há anos (“penso eu de que”)…
Isso parece-me um projecto bem divertido.
As grelhas de interpretação ajudam sempre… 🙂
Uma grelha maltratada, mas talvez ajude a perceber melhor a coisa.
Talvez se possa tentar uma explicação mais simples: a maior parte dos ‘gays’ são e sempre foram pessoas normais, e conservadoras, com uma naturalíssima falta de imaginação. Nem vejo por que razão seria de esperar outra coisa. Como de costume, os primeiros a reagir contra a opressão foram os mais corajosos, mais criativos e mais cultos o que, pelo efeito de selecção resultante, deu origem a uma percepção distorcida da população ‘gay’.
Ok, faz sentido.
Muito bom. Vou ver se respondo (ou completo, porque não tenho muito a discordar).
A coisa está um bocado mal construída, mas olha, faz o que puderes.
Sócio, eu acho que o Porter não vende neste mercado. Os gays que se casam entre si, não aspiram a tornar-se mais respeitáveis. Manter-se-iam respeitáveis, se recolhidos na sua união de facto e aos seus papéis tradicionais, mais ou menos visiveis. O gay cool já foi absorvido pelo mainstream. Nenhum susto para os conservadores. Cumpre-se o requisito da respeitabilidade que é a aderência pacífica às convenções sociais. Momento 1 é o da repressão; os momentos 2 e 3, são efetivamente de baixo custo; não se alterou grande coisa o preço, de um momento para o outro.
Agora trata-se, pelo contrário, de afrontamento, e neste particular é muito mais próximo do Maio de 68 do que pensa o Pedro, ou, já nos objetivos, do movimento americano dos direitos cívicos. A mulher negra que se sentou no lugar do autocarro reservado aos brancos estava acima de tudo a afrontar uma proibição que a relegava para segundo plano. O que procurava era a dignidade, não o reconhecimento público. Manter-se-ia a partir daí de cabeça erguida, com a auto-estima em alta, ainda que os brancos se sentassem em local diferente; se acantonassem, por exemplo, nos lugares traseiros, ou onde quer que se sentissem melhor. Não procurou mais conforto; pelo contrário, seria alvo daí para a frente do desconforto de se tornar visível. O mesmo para os casamentos mistos. Conquistar e manter a dignidade é difícil e tem riscos, não é uma boda de casamento, seguida de lua-de-mel. Portanto, os altos custos começarão agora.
Isto são objetivos definidos e claros. Os conservadores, pelo contrário, não sabem ainda o que pensar. A sua recção é a do medo, do estranhamento de uma nova ordem, reação típica de qualquer conservador que se preze. Andam a tatear justificações, envolvem-se em receios e tentam espalhá-lhos, como o de que isto seria uma espécie de princípio do fim da civilização ocidental, ou, no mínimo, o fim de uma sua instituição, das mais importantes, e de que com estas coisas nasceriam menos crianças, que as que restam correriam riscos, etc etc, já li de tudo. Qualquer sinal daqui para a frente será, para eles, a confirmação triunfal dos seus receios e mal podem esperar: divórcios, maus-tratos, notícias de problemas com crianças adotadas por gays, etc, é só esperar um pouquinho, que não tarda. Não serão para eles sinais de uma longa linhagem de normalidade, mas do excepcionalismo do casamento gay, a justificar que nem no próximo milénio se pense em tal coisa, cá, e a revogação imediata da lei, lá.
A única coisa que ainda não percebi inteiramente é a reação dos liberais, aqueles que se reinvidicam da herança dos liberais austríacos, os neo-liberais, etc, essa tralha toda. Esses, frequentemente, adotam uma tática curiosa, a do gozo e da ironia, quando não optam pelo silêncio. Também não sabem o que pensar, como os conservadotres clássicos, mas já não lhes é inteiramente desculpável que o não saibam.
também ando com falta de tempo, como o montesquieu
Mais como Montaigne, por causa da gota.
Estavas inspirado.
Lol.
Já estou como o Gore Vidal: o casamento gay dá-me sono…
Está como o Gore Vidal?
Mark Twain, não sei. P. António Vieira, tenho a certeza, numa carta: vai esta longa, infelizmente, porque não tive tempo de a fazer mais curta…
Vou fazer uma lista.