(Há cerca de um mês, dei uma conferência com o título que tem este post. Aqui a declino.)
As armas de Lisboa são bem conhecidas de todos, da orgulhosa bandeira do concelho
à modesta calçada “à portuguesa”,
dos candeeiros do Largo do Chiado
aos azulejos do miradouro de Santa Luzia,
ou da mais tradicional cortina de renda
ao mais irreverente grafitti.
Os elementos comuns da heráldica de Lisboa são, como se pode ver, o barco e os corvos. Qual é a sua origem?
A iconografia tradicional de Lisboa está relacionada com São Vicente, padroeiro da cidade desde 1173 e um dos mártires da perseguição romana aos cristãos de 303-304. A mesma que produziu outros santos hispânicos presentes na toponímia lisboeta como Santa Justa, Santa Engrácia, São Félix (do convento de Chelas, hoje Arquivo Histórico Militar) ou os santos Veríssimo, Máxima e Júlia (titulares da igreja de Santos-o-Velho).
Segundo as fontes mais antigas – o Peristefanon de Prudêncio, do final do séc. IV, e os sermões de Santo Agostinho, do início século V -, Vicente nasce em Huesca, torna-se diácono em Saragoça e é martirizado em Valência. Supliciado com garfos de ferro, atado a um cavalete em cruz, atormentado numa grelha em brasa, preso numa cela com telhas partidas no chão, o seu corpo é abandonado num descampado após a morte. Um ou vários corvos, dependendo das versões, protegem-no dos ataques das feras. Os algozes atiram-no então ao mar, com uma mó ao pescoço, mas o cadáver flutua miraculosamente e dá à costa, sendo por fim recolhido e sepultado pelos cristãos da cidade. Objecto de devoção imediata, os restos são trasladados para a catedral de Valência ainda no século IV, dando origem a um culto muito difundido. É, aliás, o único mártir hispânico com festa universal, a 22 de Janeiro. Na área mediterrânica, várias cidades reclamam a posse total ou parcial das suas relíquias: Valência, Saragoça, Paris, Castres, Metz, Le Mans, Roma, Milão, Bérgamo, Volturno, Bari, Monembasia (Grécia) e até Abingdon (Inglaterra).
Embora as narrativas da paixão de São Vicente devam mais à lenda do que à história, fixam desde cedo os atributos da sua iconografia: a dalmática e o evangelho, símbolos da sua condição de diácono; o cavalete em cruz, a grelha e os garfos de ferro, instrumentos do seu martírio; a mó, o barco e os corvos, protagonistas da miraculosa conservação do corpo – aspecto decisivo, pois sem relíquias o culto não se difunde.
Iconografia rica, mas que raramente se apresenta em conjunto. Um dos casos raros é o frontal do altar da igreja de Santa Maria del Monte de Liesa, perto de Huesca (terra natal de S. Vicente, recorde-se), datado do século XIII.
Este frontal mostra já o barco e os corvos relacionados com o martírio de São Vicente, como se vê na imagem do canto inferior esquerdo, ainda na companhia do cadáver flutuante e da mó ao pescoço. A mó e o cavalete, que aparece na imagem imediatamente acima, tornar-se-ão os elementos dominantes da iconografia vicentina em toda a Península Ibérica, à excepção de Portugal. Veja-se, por exemplo, um célebre retábulo da Sé de Saragoça,de 1466, atribuído a Tomás de Giner e hoje no Museu do Prado, em Madrid.
São Vicente, ladeado por dois anjos que cantam em seu louvor, surge com o livro, a dalmática e a palma da vitória, símbolo do martírio, mas também com a mó ao pescoço e o cavalete. Aos pés, está o devoto que mandou fazer o quadro e um mouro vencido, possível alusão ao governador romano Daciano, o pagão que segundo a lenda martirizou São Vicente, ou aos muçulmanos contra os quais Castela ainda se batia em Granada. O núcleo da tradição espanhola já se encontra aqui definido e, no futuro, apenas virá a conhecer pequenas variantes.
Em França, a iconografia de São Vicente tem um desenvolvimento mais livre. A grelha é um dos atributos frequentemente associados ao santo, confundindo-o por vezes com São Lourenço. É assim que surge no século XII na Capela dos Monges de Berzé la Ville, uma igreja da Ordem de Cluny com fortes influências bizantinas.
Embora a imagem, já marcada pelo tempo, não seja muito clara, é possível ver a grelha em brasa e os longos garfos de ferro de que os verdugos se servem para supliciar o mártir, sob o olhar atento do governador romano, sentado num trono e empunhando um ceptro. A tradição francesa dará também origem à curiosa figura de São Vicente com um cacho de uvas na mão, representação exclusiva de França, onde este santo é padroeiro dos vinhateiros porque a sua festa, a 22 de Janeiro, cai nos últimos dias do ano em que a geada pode ser fatal para as vinhas. Ei-lo num estandarte da diocese de Sens de 1996, que assinala também a data do martírio e a do baptismo de Clóvis, o primeiro rei franco convertido ao Cristianismo.
Já em Itália, as imagens de São Vicente são ainda mais variadas, chegando ao ponto de reduzir os atributos vicentinos ao mínimo universal: o livro e a dalmática. É o caso do retábulo da capela do cardeal D. Jaime de Portugal em San Miniato del Monte de Florença, no século XV, que o representa ao lado de Santiago e Santo Eustáquio.
D. Jaime era filho do infante D. Pedro e neto de D. João I. Após a derrota e morte do pai na batalha de Alfarrobeira, acolhe-se à protecção da sua tia Isabel da Borgonha, sendo depois chamado a Itália pelo Papa, que o nomeia arcebispo de Lisboa à revelia de D. Afonso V. O conflito resolve-se com a atribuição do título de cardeal de Santo Eustáquio a D. Jaime, que acaba por morrer em Florença. A sua acidentada vida está resumida no quadro: Santiago é o seu padroeiro (Jaime=Tiago) e Vicente e Eustáquio os padroeiros dos seus títulos eclesiásticos. A iconografia, porém, é italiana e renascentista: os santos parecem humanistas ou cortesãos, de vestes sumptuosas e sandálias clássicas, mas sem os símbolos do martírio ou da peregrinação que abundam nas representações medievais. Note-se como a palma do martírio se converte em raminho estilizado ou o chapelão e o bordão de Santiago em báculo e chapéu de luxo. Estamos muito longe de barcos e corvos.
O que nos leva a recuar na história para compreender a originalidade da tradição portuguesa. Entre nós, a historiografia medieval conta que as relíquias vicentinas terão sido trasladadas de Valência para Sagres, no extremo sudoeste da Península, por receio da invasão árabe de 711, e para Lisboa em 1173, no reinado de D. Afonso Henriques. Esta versão surge pela primeira vez nos Miracula Sancti Vincentii, escritos ainda em vida do rei fundador, ou seja, antes de 1185. No entanto, a presença cristã em Sagres durante o domínio muçulmano está já atestada nas fontes árabes. No século XII, o célebre geógrafo Edrici situa no local uma “igreja do Corvo”, onde “sobre a cumeeira do edifício estão dez corvos: ninguém sabe porque estão ali, nunca ninguém pôde verificar a sua falta”. Os nomes da igreja e do local passam para as fontes cristãs e são repetido pelos Miracula (“um sítio muito afastado para ocidente designado na nossa língua por Cabo de S. Vicente do Corvo e em árabe por elknecietal corabh, ou seja, igreja do corvo”), que acrescentam a informação de que, durante a viagem das relíquias do Algarve para o Tejo, “o mar, que na zona se apresenta sempre encapelado com vagas e ventania, se manteve então calmo e tranquilo”, por evidente “desígnio divino”.
Tais andanças marítimas e a eterna companhia dos corvos, a juntar ao antigo milagre da flutuação do corpo depois de lançado às águas, estarão na origem da iconografia nacional. Ainda segundo os Miracula, São Vicente torna-se um santo especialmente popular entre os marinheiros e os pescadores de Lisboa, além de padroeiro do concelho e da diocese, devoção que se vai traduzir muito depressa na simbólica institucional. Em 1233, o mais antigo selo conhecido do município ostenta já os corvos e o barco ainda hoje patentes nas armas da cidade.
Do mesmo modo, o cabido da Sé, que tinha à sua guarda, juntamente com o mosteiro de São Vicente de Fora, as relíquias vicentinas, incorpora os atributos do santo na sua heráldica, como mostra o selo do cónego Egas Lourenço Magro em 1304.
Estas imagens permitem concluir que, em Portugal, o barco e os corvos se identificam desde cedo com S. Vicente e com Lisboa. Da sigilografia, ambos os elementos terão passado à arte sacra. Estão já presentes na estatuária medieval, como mostra esta imagem datável dos séculos XIV ou XV, de proveniência desconhecida mas hoje no Museu Nacional de Arte Antiga. Estão presentes também na iluminura, por exemplo no Livro de Horas dito de D. Manuel, da primeira metade do século XVI,
e na pintura, aqui num quadro de São Vicente, São Martinho e São Sebastião, de cerca de 1530 e autor anónimo, embora atribuído ao famoso Frei Carlos do Convento do Espinheiro de Évora (quadro hoje no Museu Alberto Sampaio de Guimarães).
Diga-se, de passagem, que isto levanta uma questão decisiva sobre os chamados painéis de São Vicente. Tudo o que sabemos sobre eles – autoria, data, localização, disposição, personagens – nasce de hipóteses muito discutidas entre os historiadores. Desde o século XIX que o santo (ou os santos…) dos painéis centrais (se é que eram centrais…) se identifica com o padroeiro do mosteiro de São Vicente de Fora, onde foram descobertos. Contudo, o santo dos painéis apresenta só dois dos atributos clássicos, e de modo algum exclusivos, de São Vicente: o evangelho e a dalmática. Para complicar ainda mais as coisas, uma das figuras tem na mão um bastão, símbolo do comando, que não aparece em nenhuma outra representação conhecida de São Vicente.
É certo que as representações minimalistas do mártir, como a da capela de San Miniato del Monte de Florença, não são inexistentes, sobretudo fora de Portugal. Mesmo entre nós, Pedro Alexandrino seguiu ainda essa tradição erudita no retábulo da nova capela de São Vicente da Sé de Lisboa, pintado na segunda metade do século XVIII.
Trata-se, no entanto, de uma figuração rara na arte portuguesa. Por outras palavras, o São Vicente dos painéis ainda levanta dúvidas.
Outra via de vulgarização da iconografia vicentina em Lisboa é a heráldica monumental. Em 1336, o Chafariz do Andaluz, mandado construir por D. Afonso IV e pelo concelho, apresenta já o brasão com o barco e os corvos,
assim como, em 1360, o antigo Chafariz de Arroios, entretanto demolido (a lápide está no Museu da Cidade).
Aliás, os chafarizes de Lisboa, equipamentos municipais de grande importância até à generalização da água canalizada, reúnem, ao longo do tempo, um notável conjunto de brasões concelhios. Na segunda metade do século XVI, destaca-se o do Desterro (hoje também no Museu da Cidade), que tem a particularidade de ostentar, não a simples barca dos brasões medievais, mas uma imponente nau. Esta mudança na iconografia reflecte mudanças na própria realidade histórica: os navios usados na expansão ultramarina eram cada vez maiores para rentabilizar viagens cada vez mais longas.
Assim, a nau torna-se o elemento dominante das armas lisboetas a partir do século XVI. É bem visível na célebre iluminura do Livro do Regimento dos Vereadores e Oficiais da Câmara de Lisboa, de 1502, uma imagem que recupera a velha tradição de respresentar o corpo de São Vicente no brasão da cidade.
Por vezes, a nau torna-se mesmo o principal atributo de S. Vicente, como nas moedas de ouro de D. João III, de que aqui se reproduz um exemplar de 1555,
ou na estátua seguinte, datada do século XVII e conservada na Sé de Lisboa.
É mais invulgar que o mesmo se passe com o corvo. Veja-se esta pequena lápide na Rua das Farinhas, na Mouraria, de data incerta (talvez dos séculos XVI ou XVII, a julgar pela grafia)
ou esta imagem em São Vicente de Fora, do século XVII.
A tradição mais corrente, porém, continua a incluir tanto a nau como os corvos. No século XVIII, um dos melhores exemplos é este dinâmico emblema da cidade no Chafariz d`El-Rei, na Rua do Cais de Santarém, reconstruído após o terramoto de 1755.
Os séculos XIX e XX assistem a uma grande difusão dos símbolos de Lisboa, em parte devido à revalorização da heráldica concelhia com as reformas administrativas do liberalismo, em parte devido ao explosivo crescimento da cidade e à construção de novos equipamentos públicos. Ei-los no frontão do edifício dos Paços do Concelho, após o incêndio de 1863,
em 1934, no programa das festas da cidade, desenhados por Almada Negreiros,
em 1940, assinalando a construção da Fonte Luminosa,
no viveiro do jardim do Campo Grande, em 1955,
ou na estátua de São Vicente do Largo das Portas do Sol, da autoria de Raul Xavier, erguida em 1973 para comemorar os oitocentos anos da trasladação.
Longe de se limitar à iconografia do poder, a nau e os corvos revelaram depois do 25 de Abril uma surpreendente plasticidade. Hoje, eles estão um pouco por todo lado. Para concluir, deixo três exemplos do uso da simbólica tradicional em contextos contemporâneos.
O primeiro é um quadro dedicado por Júlio Pomar a Fernando Pessoa, que junta este símbolo moderno de Lisboa ao velhinho corvo.
O segundo é de Pedro Vieira e vem do blogue Arrastão . Satiriza uma possível recandidatura de Santana Lopes à Câmara de Lisboa em 2008, chamando-lhe “cadáver político” e dando-lhe o lugar de São Vicente na barca da trasladação.
O terceiro é o logotipo de uma página de Facebook destinada a promover uma campanha para que Woody Allen realize um filme em Lisboa.
São três exemplos de actualização da heráldica lisboeta. O investimento do poder na iconografia vicentina produziu ao longo de oitocentos anos uma simbólica muito simples, mas de grande capacidade de adaptação aos mais diversos meios e suportes. Vale a pena conhecê-la: a história das cidades é também a história das suas imagens.
PP
Provavelmente, o post mais chato do mundo, com o devido respeito.
Com o devido respeito e sem provavelmente.
Apreciei muito, obrigado.
desculpar o quê? Não haver o símbolo do SLB?
Ganha tino.
Não só gostei como agradeço o trabalho. Conseguiu criar curiosidade e satisfazê-la.
Muito interessante, instrutivo e bem articulado com as imagens. Gostei muito.
[…] A nau e os corvos: São Vicente e as armas de Lisboa. […]
Uma liçao magistral. PVicente. Osca-Huesca
Muchas gracias por este fantástico artículo. La Asociación VIA VICENTIUS VALENTIAE está recuperando un camino histórico que rememora los pasos del Patrón de Valencia, cuando en el siglo IV fue apresado en Zaragoza junto al Obispo Valero por los soldados romanos enviados por el Cónsul Daciano y trasladado a Valencia, nuestra ciudad, para sufrir martirio ante la negativa a renunciar a su fe. Así la difusión del conocimiento de este hecho provocó en los siglos siguientes una corriente de peregrinaciones desde toda Europa hasta Valencia para visitar los restos del mártir en San Vicente de la Roqueta, convirtiéndose este fenómeno en algo muy anterior a las peregrinaciones medievales a Santiago de Compostela. Saludos desde Valencia ¡¡¡¡¡
Salvador Raga
Presidente
VIA VICENTIUS VALENTIAE-VIA ROMANA
http://www.caminodesanvicentemartir.es
http://viavicentius.blogspot.com.es
Agradeço a informação histórica muito bem redigida e documentada com imagens e lamento profundamente a ignorância dos meus conterrâneos, que naturalmente só apreciam “telenovelos” e futebol. Tristeza de povo a que chegámos.
Leonor
Muito obrigado pela excelente partilha! Saudação Itinerante 😉
Muito bom! Para quem quer conhecer alguma coisa acerca de São Vicente, de facto, fica com uma panorâmica bastante completa. Obrigado pela partilha.
Maria José Cunha
Obrigada! Belo texto e imagens!